segunda-feira, 28 de março de 2011

O travesseiro de pena

O primeiro texto que vou postar aqui é um maravilhoso conto de Horácio Quiroga, escritor uruguaio que ficou conhecido por seus textos macabros. A história me impressionou tanto que ficou em minha mente durante alguns dias após a leitura. E, embora seja ficção, só pra garantir, nunca irei utilizar um travesseiro de penas..

O TRAVESSEIRO DE PENA
Tradução de Wilson Alves-Bezerra

Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o caráter duro de seu marido gelou suas sonhadas fantasias de noiva. Entretanto ela gostava muito dele, mesmo que, às vezes, com um leve estremecimento quando, voltando juntos à noite pela rua, ela lançava algum olhar furtivo à alta estatura de Jordán, mudo já há uma hora. Ele, por sua vez, amava-a profundamente sem, no entanto, dar disso qualquer mostra.

Durante três meses - casaram-se em abril - viveram uma felicidade especial. Sem dúvida ela houvera desejado menos severidade nesse rígido céu de amor; mais expansiva e descuidada ternura; mas o impassível semblante de seu marido sempre a detinha.
A casa em que viviam influenciava não pouco em seus estremecimentos. A brancura do quintal silencioso - frisos, colunas e estátuas de mármore - produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de desagradável frio. Ao passar de um cômodo a outro, os passos encontravam eco por toda a casa, como se um profundo abandono houvesse sensibilizado sua ressonância.
Nesse estranho ninho de amor, Alice passou todo o outono. Havia terminado, não obstante, por lançar um véu sobre seus antigos sonhos, e ainda vivia adormecida na casa hostil sem querer pensar em nada até chegar seu marido.
Não é de se estranhar que emagrecesse. Sofreu um ligeiro ataque de influenza que se arrastou insidiosamente por dias e dias; Alice não se restabelecia nunca. Ao fim de uma tarde pôde sair ao jardim apoiada ao braço de seu marido. Olhava com indiferença a um e outro lado. De repente, Jordán, com profunda ternura, passou-lhe lentamente a mão pela cabeça, e Alice desfez-se em lágrimas, lançando-lhe os braços ao pescoço. Chorou longamente todo seu espanto calado, aumentando o pranto à mais leve carícia de Jordán. Logo os soluços foram diminuindo, e ela ainda ficou alguns instantes escondida em seu peito sem mover-se ou pronunciar palavra.
Foi esse o último dia em que Alice esteve em pé. No dia seguinte amanheceu desvanecida. O médico de Jordán examinou-a com extrema atenção, ordenando-lhe calma e repouso absolutos.
- Não sei - disse a Jordán na porta da rua. Ela tem uma fraqueza tão grande que não entendo. E sem vômitos, nada... Se amanhã ela despertar como hoje, telefone imediatamente.
No dia seguinte, Alice amanheceu pior. Houve consulta. Foi constatada uma anemia crescente e agudíssima, completamente inexplicável. Alice não teve mais desmaios, mas rumava visivelmente à morte. Durante todo o dia o quarto ficou com as luzes acesas e em total silêncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alice permanecia meio adormecida. Jordán quase vivia na sala, com todas as luzes também acesas. Caminhava sem parar de um lado para o outro, com incansável obstinação. O tapete silenciava seus passos. De tempos em tempos entrava no dormitório e prosseguia seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um instante em cada extremo para observar sua mulher.
Logo Alice começou a ter alucinações, confusas e flutuantes a princípio, mas que logo desceram rente ao chão. A jovem, com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar a um e outro lado do tapete sob a cabeceira da cama. Numa noite ficou de repente com o olhar fixo. Depois abriu a boca para gritar, e seu nariz e lábios brilharam de suor.
- Jordán! Jordán! - gritou, rígida de espanto, sem deixar de olhar para o tapete.
Jordán correu para o quarto e, ao vê-lo aparecer, Alice lançou um alarido de horror.
- Sou eu, Alice, sou eu!
Alice contemplou-o, ausente, olhou para o tapete, voltou a olhá-lo, e depois de um longo tempo de entorpecida confrontação voltou a si. Sorriu e tomou entre as suas a mão do marido, acariciando-a por meia hora, tremendo.
Entre suas alucinações mais recorrentes, houve um antropóide apoiado no tapete sobre os dedos, que tinha fixos nela os olhos.
Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali diante deles uma vida que se acabava, sangrando-se dia a dia, hora a hora, sem que soubessem realmente como. Na última consulta, Alice jazia em estupor enquanto lhe tomavam o pulso, passando de um a outro o seu braço inerte. Observaram-na longamente em silêncio e foram para a sala de jantar.
- Pst... - Deu de ombros o desalentado médico. É um caso inexplicável... Não há quase nada a ser feito...
- Só me faltava essa! - suspirou Jordán. E tamborilou bruscamente na mesa.
Alice foi se extinguindo em subdelírio de anemia que se agravava durante a tarde, mas que melhorava às primeiras horas. Durante o dia sua enfermidade não avançava, mas a cada manhã amanhecia pálida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a vida lhe escapava em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao despertar a sensação de estar esmagada na cama com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia, esse aniquilamento não a abandonou mais. Mal podia mover a cabeça. Não quis que tocassem na sua cama, nem que lhe arrumassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares avançavam agora em forma de monstros que se arrastavam até a cama, e subiam com dificuldade pela colcha.
Logo perdeu a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar, a meia-voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monótono que vinha da cama, e o surdo retumbar dos eternos passos de Jordán.
Alice morreu, por fim. A empregada, quando entrou depois para desfazer a cama, já sozinha, olhou com espanto o travesseiro.
- Senhor! - chamou Jordán em voz baixa. O travesseiro tem umas manchas que parecem de sangue.
Jordán aproximou-se rapidamente e inclinou-se sobre o travesseiro. De fato, sobre a fronha, de ambos os lados da marca que havia deixado a cabeça de Alice, viam-se pequenas manchas escuras.
- Parecem picadas - murmurou a empregada depois de um instante de imóvel observação.
- Coloque-o na luz - disse a ela Jordán.
A empregada levantou o travesseiro; mas em seguida deixou-o cair, e ficou olhando, pálida e tremendo. Sem saber por quê, Jordán sentiu seus cabelos se arrepiarem.
- Que foi? - murmurou com a voz rouca.
- Pesa muito - balbuciou a empregada, sem parar de tremer.
Jordán levantou o travesseiro; pesava extraordinariamente. Saíram com ele e, sobre a mesa da sala de jantar, Jordán cortou a fronha e a capa com um só golpe. As penas de cima voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca totalmente aberta, levando as mãos crispadas à cabeça. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchado que só se notava a boca.
Noite após noite, desde que Alice havia caído de cama, aplicara sua boca - sua tromba, melhor dizendo - às têmporas de Alice, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A remoção diária do travesseiro teria, sem dúvida, impedido a princípio seu desenvolvimento; mas a partir do momento em que a jovem já não conseguia se mover, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, o monstro havia esvaziado Alice.
Esses parasitas de aves, diminutos em seu meio habitual, chegam a adquirir em certas condições proporções enormes. O sangue humano parece ser-lhes particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nos travesseiros de pena.

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